Esta foi a segunda visita realizada pelo instituto Gaia ao Projeto "Chama Chuva”, no Sítio Lagoa dos Patos. A primeira visita foi realizada em 12 de junho de 2021, com o intuito de conhecer as experiências realizadas pela jovem Maria Rita, membro dos Jovens da Reserva da Biosfera do Pantanal, área apoiada pelo Instituto Gaia. O Instituto Gaia acrescenta que esta semana, no dia 23 de agosto, o Mapbiomas apresentou os resultados que validam este relato a seguir sobre a escassez hídrica que afeta o Pantanal de Cáceres. Acompanhe a Parte I da entrevista: Conhecendo o Sítio Lagoa dos Patos
Maria Rita: O sítio foi comprado pelo meu avô na década de 1990, e depois que ele se foi, a propriedade foi dividida entre seus filhos (incluindo meu pai).
Maria Rita: Meus pais e vizinhos relatam secas severas que aconteceram anteriormente, mas nenhuma com esta duração/intensidade. O que mais falam é de como as chuvas agora demoram mais para voltar (geralmente o período chuvoso começava no fim de setembro, e agora é no fim de novembro - quiça começo de dezembro). Eu tirei uma foto de agosto do ano passado, quando eu voltei pra cá, na qual estou andando de caiaque com o meu pai na lagoa. Isso quer dizer que ano passado, nessa mesma época, a lagoa tinha água suficiente para navegarmos. Quando minha mãe estava grávida de mim, nadava nessa mesma lagoa - junto com jacaré e tudo. Agora não resta nada, nenhuma gota de água.
Maria Rita: Sim. Temos um poço semi-artesiano de 12m de profundidade, do qual bombeamos água através de uma bomba palito. Tentamos distribuir bem os horários da irrigação (ou então irrigamos de forma intermitente, para dar tempo do lençol freático se recuperar) e economizamos o máximo de água possível. Esse ano já escutei vários relatos dos meus vizinhos falando que o poço deles secou. Temos muito medo de ficar sem água, o que é uma possibilidade super factível.
4. Instituto Gaia: O que você pensa que pode estar contribuindo com a diminuição das chuvas e intensificação da seca no Pantanal?
Maria Rita: Na minha opinião, o fato de que agora chove menos e por um menor período de tempo é um indício de que realmente estamos adentrando uma crise climática sem precedentes. Nosso regime de chuvas também é afetado diretamente pelo desmatamento: menos árvores, menos chuva. Isso que acontece aqui, na transição do Cerrado para o Pantanal, está conectado e é agravado pela devastação na Floresta Amazônica e do Cerrado, que não consegue mais produzir a quantidade de água que antes alimentava as cabeceiras de nossos rios. O descaso com a proteção das matas ciliares no Cerrado também afeta o ciclo da água. Justamente por não entendermos que o macro organismo planeta Terra é feito de inter-relações é que estamos caminhando para o processo de savanização e desertificação dos biomas. Importante ressaltar que sem árvores, o vento quente passa livremente levando boa parte da umidade do solo e ressecando a terra, que se torna impermeável (pois o solo está exposto e decaído) e a água percola sem infiltrar, “rompendo” com o ciclo de carregamento dos lençóis freáticos e afetando a disponibilidade hídrica. Resumindo: o planeta está colapsando e o uso que fazemos do solo, principalmente na agricultura convencional, é um dos principais culpados pois afeta, desestabiliza e ignora a ciclagem dos elementos naturais.
5. Instituto Gaia: Por favor, pode descrever cada processo que está sendo desenvolvido no sítio? Se possível comente sobre os erros e acertos e o que está dando certo até o momento.
Maria Rita: Bom, os princípios agroflorestais e agroecológicos que busco colocar em prática aqui no sítio já foram “comprovados” por milhares de agricultores que, em diferentes escalas, conseguiram (e conseguem) manter a produção de alimentos limpos (sem o uso de agrotóxicos) mesmo em situações de escassez hídrica. Para todos que fazem agrofloresta, a regra é clara: irrigação é cobrir o solo. Mesmo com tantas provas e conceitos bem definidos, isso não impede que meu coração se encha de alegria quando levanto a palhada depois de um dia extremamente quente e voilà: a terra está úmida. Esse é o preceito número um: cobertura de solo. Tentamos mimetizar os mecanismos naturais de uma floresta, que sabe muito bem como se manter. Geralmente, o solo dela está sempre coberto por serrapilheira, que vira adubo uma vez que é decomposta mas é produzida constante e abundantemente que nunca para de proteger a terra. Quando cobrimos o solo, fazemos com que a água contida no mesmo não evapore, criando um ambiente propício para o desenvolvimento das plantas. Além disso, impedimos que os raios solares diretos afetem as camadas superficiais da terra e criem lajes compactadas, que por sua vez impediriam a água de entrar pelos poros. Por último, ao cobrir o solo “alimentamos” os microorganismos benéficos que são os responsáveis por manterem a vida do sistema inteiro - falamos que, na verdade, o principal trabalho de quem mexe com agrofloresta é ser pastor de microorganismos, porque são eles que fazem a magia acontecer - mantendo o solo coberto, mantemos o solo vivo. Mesmo sabendo disso, acabei calculando mal a produção de matéria orgânica (capim braquiária) nas entrelinhas do sistema agroflorestal, e faltou capim para cobrir o solo. Resultado: solo exposto, zero retenção da água. Se você não tem M.O (matéria orgânica) suficiente para cobrir o solo, é melhor deixar que as plantas espontâneas tomem conta - elas foram enviadas para isso, para servirem como “band-aids” prontas para cobrir a terra que foi descoberta e se encontra indefesa.
Outro ponto absolutamente importante para enfrentarmos a crise climática e a escassez hídrica é o plantio de culturas adaptadas ao nosso bioma. Parece óbvio, mas muitas pessoas insistem em plantar espécies que exigem muita água, solos férteis ou que não se dão bem com o sol mato-grossense - nesse caso, acabam precisando irrigar a área constantemente, adicionar adubação externa em grande quantidade e até utilizam insumos químicos para que a área tenha condições de “sustentar” aquela espécie. Nossa maior função na agrofloresta é manejar o ambiente de forma que ele mesmo passe a fornecer os nutrientes e nichos necessários para a presença e evolução da vida, e as espécies nativas passaram por milhares de anos de aperfeiçoamento para desempenharem exatamente esse papel. Aliás, penso que para recuperarmos o Pantanal (por exemplo), teremos que utilizar - inicialmente - espécies da caatinga, assim como teremos que usar espécies do cerrado para recuperarmos a qualidade ambiental da Amazônia. As plantas adaptadas ao bioma do Pantanal não encontram mais o suporte de que precisam: o ciclo de cheia e seca mudou, a cobertura do solo mudou, a presença de certos animais mudou, os nichos ecológicos foram reduzidos à cinzas.
Por último, no momento do planejamento/plantio/manejo da roça, levamos em conta os conceitos de estratificação e sucessão - amplamente divulgados e pesquisados no âmbito da agroecologia, agrofloresta, agricultura sintrópica e restauração ambiental. A estratificação está relacionada com a quantidade de luz que cada espécie necessita para se desenvolver plenamente, enquanto o estágio da sucessão representa qual é o “momento” em que aquele sistema se encontra e quais espécies podem desempenhar seu papel da melhor forma naquele cenário. Isso significa que os consórcios (diferentes espécies plantadas em arranjos) são pensados de forma a incrementar a dinâmica do ambiente e maximizarem a captação e metabolização dos recursos disponíveis. Dizem que a agricultura é “a arte de colher o sol”, e é por aí mesmo: queremos que todas as espécies estejam no seu nicho ecológico ideal para que consigam captar o máximo de energia solar possível, criando as condições necessárias para que as espécies dos próximos estágios de sucessão (mais especializadas e mais exigentes em relação à qualidade ambiental) tenham sucesso em sua caminhada.
Assim como as plantas e os outros animais, os humanos também precisam melhorar a qualidade do ambiente onde vivem (planeta terra), aumentando e aprimorando a dinâmica da vida por onde passam. É isso que estamos tentando fazer aqui.
É possível acompanhar outros relatos de escassez hídrica no Pantanal informado pelos moradores do Assentamento Antonio Conselheiro I, conhecido como Assentamento Laranjeira, Cáceres, Mato Grosso, “em época onde normalmente ocorria chuva, não ocorre mais, está impreciso o período de chuva” … “quando tinha mata tinha chuva” (IKEDA-CASTRILLON et al., 2017).
A crise hídrica no Pantanal foi tema do livro “Escassez Hídrica e Restauração Ecológica no Pantanal” que surgiu a partir do projeto “Recuperação de nascentes e fragmentos de mata ciliar do córrego no Assentamento Laranjeira I e mobilização para conservação dos recursos hídricos no Pantanal mato-grossense” financiado pelo Ministério do Meio Ambiente/UNEMAT bem como a participação de membros do Instituto Gaia, projeto iniciado em 2012 e encerrado em 2016, livro completo: https://www.solangeikeda.com/artigos/escassez-h%C3%ADdricae-restaura%C3%A7%C3%A3o-ecol%C3%B3gica-no-pantanal.
Solange Kimie Ikeda Castrillon, que coordenou o Projeto Laranjeira, autora do Livro Escassez Hídrica, é doutora em Ecologia, Professora na UNEMAT e fundadora do Instituto Gaia, é autora de um artigo, juntamente com outros pesquisadores do Pantanal, que apresentaram um estudo sobre mudanças climáticas no Pantanal que nos últimos anos, há registros de perda da massa de água nos rios do Pantanal (LÁZARO eta al., 2020), confira em https://www.solangeikeda.com/artigos/climate-change-reflected-in-one-of-the-largest-wetlands-in-theworld-an-overview-of-the-northern-pantanal-water-regime.
No dia 23 de agosto de 2021, o Mapbiomas Brasil lançou os resultados sobre a dinâmica da superfície de água no território brasileiro de 1985-2020 pode ser conferido diretamente no site https://mapbiomas.org/
Fonte: Site https://mapbiomas.org/ . Acesso em 23 de agosto de 2021.
Mapeamento anual e mensal da superfície de água no Brasil entre 1985 até 2020. Disponível em https://mapbiomas.org/. Acesso 23 de agosto de 2021.
Em um dos resultados revela que Cáceres é um dos três municípios com maior perda de superfície de água no Brasil.
Em breve publicaremos a segunda parte da entrevista com a Maria Rita tratando das conexões do Sítio Lagoa dos Patos, com o Pantanal e o Projeto Chama Chuva.